terça-feira, 6 de setembro de 2011

Palavras Para Sofia...

Nas gavetas enterram-se tesouros e quem enterra um tesouro enterra-se com ele. E Sofia é uma "gaveta" e traz consigo toda uma estética do desconhecido. Quem corrobora com esta minha dedução é Rimbaud que diz: "a gaveta tem promessas e é mais que uma história". Busco também ajuda de Breton que avisa: "a gaveta está cheia de roupas limpas e há até raios de lua que podem se desdobrar". Na gaveta de Sofia - para mim e para Breton - abri-la é estender lençóis na tempestade. Com certeza, no furdunço que ocorre no interior das gavetas, nasceu nela um olhar rápido, um ouvido aguçado e atenção perspicaz para deduzir minúsculos minuetos e surpreender as intrigas complicadas que se tramam no interior destes espaços.
Não conheço a artista.
Um oceano nos separa.
As imagens de seus trabalhos caíram em minhas mãos por puro acaso virtual.
Um amontoado de coisas que associam a outras coisas criando tangentes poéticas que acabaram me inquietando. Creio que houve entre nós uma identificação através das gavetas. (digo: guardadas;). E fico então, através das imagens virtuais imaginando que a artista deve retirar da sua gaveta objectos de dor, os adorna com miçangas de fogo e presenteia aos nossos olhares... e eu olhei... assim... como "coisa" na manjedoura.
-É! Berço de sagrado.
Seu trabalho me exprime desejo. Ou dor? É a dor de uma energia. Parece que a artista segue à risca os ensinamentos de Breton que desaforadamente, em 1930, sugeriu que "o mais simples ato surrealista consiste em lançar-se à rua, revólver em punho e atirar às cegas, tão rápido quanto puder apertar o gatilho. "Ainda não sei a que balas os objetos de Sofia me vão levar. Mas sei que quero ficar no meio da multidão. Nas gavetas de Sofia a consciência não diz o que se passa no cérebro; ela apenas o exprime numa outra língua.
Sofia transforma em poesia os elementos mais banais da vida cotidiana.
Uma aficionada por jogos teatrais, por truques de mágica, pela música visceral, gerando com estes elementos monólogos de transformismo. O centro cabal de sua poesia são os objetos. É no encontro desses elementos que ela organiza seu poema promovendo efeitos inesperados quando os descontextualiza. O objeto se torna poesia, pois a poesia é uma alma inaugurando uma forma, (alguém, no furdunço da minha gaveta já disse isto, e eu não sei mais de quem é. Fica, então, sendo meu. Pelo menos por enquanto, enquanto equilibro nesse texto a "minha" poesia). Mesmo que os objetos que Sofia nos oferece sejam conhecidos, percebidos, talhados em "lugares comuns", eles nos apresentam como um objeto para o espírito, imbuído de uma nova alma que vem instituir uma nova forma, habitá-la e deleitar-se com ela. Em um objeto poético é a alma que denuncia sua presença e não é preciso mais que um momento dela para que ela se manifeste como arte.
Nas gavetas de Sofia existem almas aprisionadas e estão cheias de coisas inesquecíveis. Coisas que se desdobram infinitamente e se transformam em imensidão. Coisas em plena orgia do passado, com o presente e com o futuro.
do passado achamos: chiclete mascada mecha de cabelo retrato samambaia agulha o império romano seda caixa de pedra vietnamita machetada com signos que não se sabe ler poeira ninho casca de barata e um copo de leite negro das górgonas.
do presente achamos: cueca raios retorcidos piaf mandiopam pablito calvo unhas metálicas incenso descanso para copos duas canetas sendo uma delas uma pena de ave e a outra uma caneta tinteiro ácaros traça barata.
do futuro achamos: barata traça ácaro crisália grifo e um missal que vem da ancestral distante, onde se lê: "a flor fica sempre semente."
Que palavra será preciso dizer para abrir gaveta
(-? Abre-te Sésamo!
e distender o coração de Sofia?


Miguel Gontijo - artista plástico, do outro lado do Atlântico, em 2011.
Prémio Mário Pedrosa da Associação Brasileira de Críticos de Arte em 2010.
miguelgontijo.blogspot.com|www.miguelgontijo.com

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